quarta-feira, novembro 04, 2009

Uma grande carta

[Este texto é uma carta escrita e endereçada a um lar de idosos por uma enfermeira que, preparando o seu futuro, resolve dar indicações sobre a forma como deseja ser tratada.]


"Em primeiro lugar, permitam-me que me apresente, pois no ano 2010 terei 80 anos e é possível que seja um dos vossos residentes. Como possivelmente nesse momento, serei incapaz de vos comunicar os meus desejos, aproveito a ocasião que hoje tenho para o fazer e vos dizer como queria que me tratásseis se tivesse que passar uma larga temporada convosco.
Primeiro gostaria de conservar a minha identidade. Eu sou a Sra. Maria e é assim que desejo ser tratada. Não quero converter-me em 'Avozinha', em 'Mariazinha' ou na 'Sra. da cama 9'. Quero manter o meu nome, quero continuar a ser a Sra. Maria Pinto.
Uma das coisas mais importantes para mim é a minha intimidade. Poderei ter um quarto individual? Provavelmente não, e nesse caso, vede bem se há cortinas em torno da cama, e se estão corridas enquanto me lavam e me vestem.
Se tendes que me lavar assegurai-vos, por favor da temperatura da água. Não suporto lavar-me com água fria e muito menos o suportarei quando for velha.
Dêem muita atenção em secar-me bem, nada mais desagradável do que sentir-se molhado. Quando me derem banho, cuidai não só da higiene, mas também da minha dignidade e intimidade, por favor. Se não for capaz de me vestir só, espero que quem me cuidar se esforce em manter a minha boa aparência; gostaria que dessem atenção ao que me vestem (tentando até que as blusas combinem com as saias), que não me ponham meias venhas (ou collants com malhas), que não permitam que a combinação apareça por baixo do vestido e, por Deus, não me enrolem as meias abaixo dos joelhos.
Depois, uma vez vestida, podem pentear-me? Ah, espero que não se esqueçam de lavar os dentes!
Algumas vezes irei até à sala. Se pudéssemos estar tranquilos!
Estou certa que não é preciso deixar a televisão ligada todo o dia, sem se preocuparem se alguém olha para ela...
Se tiver livros por perto, vede se tenho os meus óculos, senão ser-me-á impossível ler...
Se no momento das refeições for incapaz de cortar os alimentos, espero que alguém o faça por mim. Se for preciso, não tenho nenhum inconveniente em comer com colher, desde que me sirvam a comida num prato fundo e nunca num raso, que me obrigaria a ir à caça dos alimentos. Gostaria de ter um guardanapo, nem que seja de papel, mas que não seja um 'babete'.
Se me tornar um inconveniente, poderiam continuar a tratar-me como um ser humano?
Por favor, não me façam cara feia quando descobrirem os meus lençóis molhados! Não me tratem nunca por 'porquinha', não me ralhem como se eu fizesse de propósito. Se posso usar fraldas não me ponham uma sonda por razões puramente práticas. Não quero passear-me com um saco de urina pendurado; seria objecto de curiosidade dos outros o que me causaria um enorme mal estar psicológico.
Seria uma prova de gentileza de vossa parte algum interesse pela minha família, pelas fotos que tenho na mesa de cabeceira; no entanto parecer-me-ia mal que me perguntassem porque não se ocupam de mim os meus familiares ou, porque razão os meus filhos não me vêm visitar mais vezes, ou não me têm com eles.
Serei feliz se puder sair de vez em quando, ver as árvores em flor na Primavera, o mar no Verão, ou simplesmente instalar-me no jardim quando o tempo o permitir.
Quando estiver internada o meu mundo será muito reduzido; permitam-me que participe no vosso. Falai-me da vossa família, dos vossos amigos; deixai que fale da minha vida passada. Fingi, se for preciso, que vos interessais mesmo quando repetir o que disse ontem ou antes de ontem.
Poderei parecer-vos exigente, exagerada nos meus pedidos, mas o que desejo é só:
-Afecto;
- Ser bem tratada;
- Ter uma pessoa amigável, que se ocupe de mim.
Estou segura que já utilizais todos estes princípios, mas seria bom que os transmitísseis aos mais jovens, já que no ano de 2010, quero ser atendida por peritos que sejam amigáveis como por profissionais competentes. Não desejareis o mesmo se tivésseis que suportar um longo período de internamento?"


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Adorei e... fez-me pensar em tanta coisa! Tudo aquilo que, a quem trabalha com este tipo de população, tem de estar mesmo com muita atenção...
Trabalhar com idosos tem tanto de desgastante como de enriquecedor, tanto de frustrante como de gratificante.
E é a eles que dedico, hoje, este pequeno texto.


Sem mais.

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1 Comments:

Blogger Unknown said...

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quinta fev. 25, 01:01:00 da manhã WET  

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