terça-feira, julho 18, 2006

Elogio ao Amor

«Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas.
Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixonade verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra.
O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea de pôr sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores.
O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como nãopode. Tanto faz. É uma questão de azar.O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra.
A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser.
O amor é uma coisa, a vida é outra.
A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra.
A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."
(Miguel Esteves Cardoso)

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Só quero dizer que isto foi o que de mais verdadeiro li ultimamente. Excelente gosto amiga. Morro de saudades.....
Mal os meus carcereiros vão para algum sitio bem longe vou raptar-te para ir curtir um pouquinho a amizade, e por a cusquice em dia. Beijinhos aos montes

sábado ago. 05, 12:55:00 da tarde WEST  
Anonymous Anónimo said...

As pessoas é que me fizeram a vida assim; a vida é que fez as pessoas assim.
Não há merda pior de vida do que a vidinha de todos os dias, mas já não conheço quem troque a sua vidinha pelo risco de viver.
O método mais eficiente que a sociedade encontrou para liquidar o amor foi instituir o contrato de vida a dois - vidinha institucionalizada.

quarta ago. 09, 01:20:00 da tarde WEST  
Blogger acbelix said...

Por muito que eu escreva, acho que o autor, que eu aprecio pelo seu desprendimento, conseguiu descrever um estado de alma que é o amor. O amor sente-se nao se combina, o amor é qualquer coisa de fabuloso, não é egoísta, não é maldoso, é altruísta, é caridoso.

Sabes que nao tenho andando bem nas minhas varias frentes de luta, e tenhome distraído de visitar a maioria das pessoas, mas aqui fica o registo de que... Vale a pena amar.

Miro

quinta ago. 10, 02:00:00 da tarde WEST  
Anonymous Anónimo said...

amei assim 2 vezes, sem qq defesa e sem qualquer interesse a não ser o de amar. E... não recomendo, não quero voltar a amar assim.Somos apanhados desprevenidos e.. naaaa

quarta ago. 16, 05:46:00 da manhã WEST  
Anonymous Anónimo said...

That's a great story. Waiting for more. » » »

quarta mar. 07, 02:59:00 da tarde WET  

Enviar um comentário

<< Home